quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Você é local?

Sou um democrata de todos os costados. Atingi a maioridade pouco depois da revolução, o meu pai levou-me a passear pela baixa no 25 de Abril. Foi um dia muito querido para a minha família, para mim também, por afinidade. O país parou e percebi na altura que algo de muito especial se estava a passar. Foi o dia em que senti pela primeira vez o apelo para me tornar num homenzinho. A perda da inocência, no entanto, demorou alguns anos a acontecer. Vivíamos então na ilusão de que tudo era possível, de que todas as coisas boas não só eram agora tangíveis como imperativas, óbvias, obrigatórias. Era bom ter a oportunidade de sonhar, ter o mundo inteiro ali à nossa frente, à disposição, ter a oportunidade de ser ingénuo.

Esta introdução tem como motivo as eleições locais. Não sei se vocês já notaram mas as autárquicas são umas eleições muito especiais. São as eleições em que votamos num gajo qualquer que mora duas portas a seguir à nossa, que eventualmente já insultámos numa hora de ponta e pelo qual temos a menor estima possível, não por o conhecermos, antes por se tratar de um desprezível vizinho. O humano, por natureza, odeia os seus vizinhos. Mas tudo bem, trata-se apenas de ódiozinho, coisa pouca, boçal, motivado pelos ruídos à noite, pela disputa dos lugares de estacionamento, pelas divergências nas reuniões de condomínio, pela patética rivalidade de bairro - quem tem o melhor carro, quem tem os melhores filhos, quem é avó primeiro - mas é inspirada nesta dinâmica de aldeola que acontecem as eleições locais. Sempre amei a democracia mas sempre odiei as autárquicas. Os Ned Flanders' lá do bairro que passaram os últimos meses a lançar charme para se colocarem a jeito para a junta de freguesia ou para a assembleia municipal. Neds estes que se propagam fungicamente e têm agora um filho nos bombeiros, outro no grupo paroquial, um cunhado na mesa de voto e primos em todas as restantes frentes.

É fácil arrasar um líder partidário ou um chefe de governo por pequenas coisas - mas quanto se trata de poder local, meus amigos, aí as regras são outras.

Quando votamos nas legislativas ou nas presidenciais, votamos em ideias, em sensibilidades e subtilezas políticas; votamos em mais liberdade ou em mais segurança. Nas locais discute-se a galinha do vizinho; discute-se um parque infantil ou um parque de estacionamento, mais dinheiro para os bombeiros ou para o grupo paroquial, com a agravante de o adversário não ser uma cor política, uma ideia susceptível de ser debatida e melhorada através da dialéctica democrática, mas antes o insuportável vizinho do quinto esquerdo.

E depois é regressar ao liceu e ver no que os nossos vizinhos se tornaram, as trocas de olhar comprometidas e comprometedoras, aquele jogo social do ver e ser visto, que nos outros sufrágios passa despercebido mas que aqui se torna visível e de uma passivo-agressividade obscena, impossível de ocultar, as invejas e os egoísmos - há algo de podre e sinistro na atmosfera - são afinal disputas pessoais que estão hoje aqui em causa, não são as causas maiores. O Hobbes e o Rosseau não entram aqui hoje. Hoje o Domingo é de caracóis e cozido à portuguesa.
A notícia de Mondim de Basto, apesar de rural, serve de base de sustentação a tudo isto.

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